quinta-feira, 14 de junho de 2012

Ver viver



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A impressionante capacidade de transportar, transpor, transformar daquele homem. Por quilometroemeio de caminhada foi capaz de se movimentar por mundos que correm paralelamente; sua habilidade de locomoção desfaz qualquer restrição inicialmente científica e sabota os limites do corpo raso, que permanece em ressonância com o resto da cidade, inertes à sua própria capacidade de portar moção, emoção qualquer que ofereça calor, paixão ou coisa alguma; quando dorme, unicamente de olhos ébrios e fechados que o homem fica guardado dentro de uma caixa, inteira de metal escuro e gelado, arestas friamente equiláteras, suas faces preenchidas por furos minúsculos permitem ironicamente a respiração, a mulher de unhas negras e muito compridas sabe precisamente que suas finas garras atingem a carne daquele que grita e sofre de dentro do invólucro. A garganta acordou gritando já em outro mundo, dessa vez repleto de nuvens e olhos que nada enxergam, ossos que estralam e se encaixam numa canção matinal; os pés se assustam com o chão exageradamente gelado, o corpo está caminhando enquanto o homem já deixou o café pronto perfumando todo um planeta organizou o dia arrumou a cama e comeu um pão envelhecido de propósito. O homem arremessa seu corpo porta afora esperando talvez assim convencê-lo das mentiras compradas em qualquer banca de jornal, guardadas debaixo do paletó, embrulham as bananas a madurecer e os corpos quebrados, esquentam os copos.
-É ele ali sentado.
Está em qualquer lugar menos aonde foi visto. Costuma ficar por perto.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Paz



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Nosso amor
é um laço tão forte e duradouro 
quanto o próprio tempo, 
quanto as coisas belas
quanto as coisas verdadeiras;
que cruzam pelo caminho 
de diversas gerações,
que fazem fileiras
por todo o espaço terrestre
esperando o dia acordar
e dormir novamente.

Estou atado a você 
assim como o dia 
atado à noite;
como essa troca eterna
de existências paralelas
e terrenas.

Enquanto estiver aqui, 
estou atado a ti.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

o homem medíocre



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O homem medíocre acorda todo dia com a cabeça doendo e a boca seca; acorda assustado muitas vezes no meio da noite temendo a hora perder, volta a dormir, aliviado, os melhores minutos que antecedem o despertador; ele confia no maquinário, e mesmo assim ele falha – o homem falha – e perde a hora; a cabeça pesa no travesseiro, o homem maduro tem a cabeça muito pesada, a testa proeminente, as rugas precoces, sobrancelhas molduram olhos ensacados, inicialmente de propósito, com o passar dos anos, o púrpura não deixa suas pálpebras mesmo depois dos longos sonhos e das raras noites tranquilas; o homem imita seu pai desde pequeno, e sua postura tesa e responsável retumba em sua lombar flamejante, em seus joelhos inflamados, seus ouvidos zunindo e seus problemas renais; é o cansaço induzido no começo por pura vaidade, por mimese aos costumes paternos, depois enraizado e incurável, é como brincar de tristeza, começar a fumar, uma droga qualquer, é como qualquer um desses vícios contemporâneos que nos tomam de repente, coca-cola, fast-food, celular e facebook: “primeiro estranha-se, depois entranha-se”.
A vista embaçada não impede que ele tateie o criado mudo em busca de seus óculos, que muitas vezes não estão onde foram deixados; os sonhos ainda não dissiparam e tão logo se misturam e confundem-se entre si, logo são memórias incógnitas mesmo parecendo ter despertado de realidades tão intensas; naturalmente, retumba na cabeça a noite pesada e mal dormida, talvez o homem tenha acordado inúmeras vezes, seu sono interrompido por um susto, um barulho, a temperatura, um desejo, fome, incontinência ou medo; seus pés, inconscientemente, encontram o chão gelado de granito, e tateiam em busca dos chinelos que guiam o corpo, inerte, por essa manhã; o ecrã do despertador revela o ritmo de sua manhã: 6:32 = 15 minutos para toalete, 10 minutos de café da manhã, 10 minutos para vestir-se e o homem já está 3 minutos atrasado; 6:05 = 15 minutos para a cidade clarear; 15 minutos para toalete, 15 minutos de café da manhã; 10 minutos para vestir-se e 5 minutos para ligar a televisão e perder a hora, só por hábito.
Chá ou café, quem dita são as dores; a sinusite sempre prefere um café, mas quando a gastrite está fazendo muita questão de fazer parte da rotina, ela abre mão e aceita o Earl Grey com leite; dor de cotovelo, e dores sentimentais são acalentadas pela camomila que adocica o ban-chá; dor de cabeça, ansiedade e dor nos nervos geralmente são muito chegadas ao chá verde com limão e pamplemousse. Dor na alma é melhor voltar a dormir, ela não entende nada de chás.
Invariavelmente o sangue ferve e a água corre pelas veias do homem medíocre, que conhece um pouco de chás, mas tem a alma repleta de sono e sonhos.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

amante

carrego dentro de mim
um diamante
esculpido pelo tempo;


quinta-feira, 10 de maio de 2012

periférico, como eu e você

my heart beats precisely at the same rate.
the smell of a plastic flower.
robotic eyes.
my sensible touch.

domingo, 6 de maio de 2012

a canção de maria


Que é de ti, melancolia?...
Onde estais, cuidados meus?...
Sabei que a minha alegria
É toda vinda de Deus...

Deitei-me triste e sombria,
E amanheci como estou...
Tão contente! Todavia
Minha vida não mudou.
Acaso enquanto dormia
Esquecida de meus ais,
Um sonho bom me envolvia?
Se foi, não me lembro mais...
Mas se foi sonho, devia
Ser bom demais pra mim...
Senão, não me sentiria
Tão maravilhada assim.

Ó minha linda alegria,
Trégua dos cuidados meus,
Por que não vens todo dia,
Se é toda vinda de Deus?

Manuel Bandeira (1913)

sábado, 5 de maio de 2012

virada

tudo que eu toco vira bosta.
vostra bosta vira ouro.
bosta de outro é pouco.

terça-feira, 1 de maio de 2012

vai e vem

é como se voltasse de uma viagem tão distante; como se eu não soubesse donde vim. É sempre a mesma sensação de transporte imediato; de tirar os pés do chão. Andando nas ruas, sentado no chão, mas principalmente deitado na cama antes de dormir; sou catapultado para desconhecidos anos e a brutal sensação (o horror, o horror) me toma o corpo. E volto rapidamente pra dormir, pra sentar ou caminhar, pois estou aqui ainda.

domingo, 22 de abril de 2012

domingo velho

tomado novamente pela raiva da condição humana, das brigas por existir, das lições desnecessárias ao ouvido; esse mal catalizador que transborda veias quase como a ressaca que os deglute, bem aventurados notívagos; da catarse coletiva resta essa falsa curiosidade pelos assuntos moribundos, como a noite, a lua e a própria vida; resta-me um pouco de paz na certeza da perfeição não como objeto desejado de alcance infinito, de significado infindável, surge como espuma flutuante, como bem estar, exaurindo a dor, o pranto e choro de independente e invariável origem; talvez dentro dessa nota sagaz e sem sentido, dentro desse mais um domingo chuvoso, dentro do meu peito e do seu, talvez dentro de tudo isso, como caixas que se inserem em caixas, esteja o verdadeiro motivo de ser futuro, de ser pequeno e de ser curto; de estar em paz.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

tudo o que nos une e nos desintegra

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Indivíduo, soberano sobre tudo que diz respeito a minha mente, corpo e alma, sou.

terça-feira, 27 de março de 2012

meu bem 2


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sabe, que eu não tenho
nada a dizer sobre a vida
que eu deixei de levar
do salário que eu deixei de ganhar.
sei que tem algo de errado
em ser um pouco feliz
num mundo com tudo ao contrário
e um puta medo do fim.
é de se desculpar pela minha falta de caráter
em nem pedir perdão
nem me interessar
por qual a sua escolha, sua opinião;
me corrói saber desse embargo inútil
da sua vida suprimida
naquilo que resta dela em mim
no seu refúgio amarelo.

isso vale pra ti
e para quem mais teve de mim esse amálgama infeliz.
essa memória triste, que vá embora.
pois estou em paz, e que fique.

isso vale pra dizer que meu barco foi embora,
e ninguém entendeu,
por mais simples que seja,
o meu sorriso bobo.
que mesmo ausente do rosto,
retumba na alma.
reflete no corpo
e brilha no escuro.
Por que todos entendiam somente
minhas dores?

venho em missão de paz,
lhe recebo em minha taba,
onde a regra única é o amor.
comemoro seu sorriso,
acaricio seu rosto
e lavo da sua alma
todo o passado e a dor.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

página 3

trecho de desabafo natalino

Falando nisso, não tenho mais que provar essa comida, que rir das mesmas coisas; não preciso achar bela qualquer lembrança infeliz; vá tudo à merda.

natal

pensamentos de uma família tipicamente natalina

1. não podemos esquecer que estamos celebrando o nascimento do menino;
2. eu chuparia as bolas do menino;
3. (...)
4. somos todos anjos, me perdoe, e perdoe meu poodle. E os pobre;
5. É... Irado;
6. Odeio pobres;
7. bzzzzz.... bzzzz;
8. ave maria...
9. panosso questásnocéu, santificadose o nosso nome;
10. dor na costa;
11. amém.

alento

nota de quem lhes fala, em seu aniversário

tem gente que chama isso que nós temos de talento. Mas é uma necessidade, simples e gutural, de cuspir pra fora isso tudo antes que se desgrace tudo o que temos por dentro. É, na verdade, nossa fraqueza: de não tolerar essa tremenda dor.

página 2

trecho encontrado colado na rua em dia de chuva

não é talento. Simplesmente pois não são todos que precisam colocar para fora; são uns brutos.

página 1

transcrição de papel solto dentro de bolso

eu vou embora, para sempre, deixei o barco ir, segui em frente; hasteei velas, recolhi âncoras, troquei a tripulação, cortei gargantas; botei as coisas pra fora, nada mais importa, fechei as cortinas, janelas, fui embora.
como ia ser bom ter um bulldog, pato, papagaio; viajar, errar caminhos, fazer desenhos nas nuvens, ver os dias passar; dividir um lanche, conta do banco, histórias ou um refrigerante; tomar chuva, chá, chocolate, sorvete de pistache; vontade de ter, como se tivesse visto crescer; não existo, insignificante, um qualquer, um meliante; discrepante alguém neste instante pensar em ser a mesma ovelha negra

vou lembrar dos dias que vivi em sociedade, achei uma garota, mais ou menos da minha idade; lembro de seu sorriso, do seu cabelo comprido; seu abraço, um gesto de amizade.
uma loucura, um acesso, um devaneio, me arrependo, foi mal, errei feio.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Elebeta


é você, borboleta, num corpo de elefante.