quarta-feira, 30 de junho de 2010

Ressaca


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É aquele menino que leu as fantásticas viagens de Gulliver que agora lhes fala. Estou navegando em meu barco, cujos mastros e velas não exercem suas funções. Já que venta tão forte hoje em dia, acabei decolando no meio desse vendaval; os ventos bradavam nervosos trovões que terminaram por fim fazendo chover tudo de uma vez. Aquele toró que encharcou o convés foi o suficiente pra lavar todo o piso, que eu nunca tive tempo de limpar; sabe como é: em viagem solitária, o capitão é o marujo; trabalho dobrado sempre! E como foram os próximos dias de brisa leve, me dei ao luxo de observar o céu. E como ele anda claro, viu. Acho que nunca o vi assim, talvez minha pele já tenha retornado àquele marrom que tantas conhecem; até meus dentes parecem mais alvos pelo contraste, quando se exibem em um gentil sorriso. Meus olhos, estão mais abertos, e talvez por isso, eu tenha visto aquele grande rochedo no qual os ventos foram arremesar a embarcação e toda sua tripulação. O único sobrevivente e membro da tripulação não se recorda completamente do acontecido; mais parece com um pastiche antigo: uma praia, um céu azul e coqueiros; porém sempre me vem aquele gosto salgado de mar, aquela ardência da areia na cueca, a ressaca do oceano, e a pele ardendo, sem falar das necessidades fisiológicas mal contidas que excluem toda a beleza de ser um náufrago como eu fui.
Juro que acordei hoje como se tivesse vivido tudo isso novamente, só que dessa vez eu fui a pedra. O navio foi ela.





foto: Slinkachu

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Presente


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Lembro sempre daquela criança que gostava de presentear. Nada mais do que uma lembrança, ou um simples agrado, que ainda eram presentes, de valor inestimável. Lembra daquele relógio de areia que um dia ganhei? A areia que escorregava não delimitava intervalo nenhum; caia escrevendo uma palavra ou frase que marcava meu dia; virando o relógio a palavra mudava. O gênio inventivo da criança que desenvolveu um dispositivo movido à estática, que -não me pergunte como- criava frases e palavras apenas com o atrito da areia. Perdi muito tempo naquele brinquedo. Aquele presente se perdeu, nunca mais o encontrei, talvez ficou preso em alguma quina do meu passado. Quando encontrei esse presente preso em minha memória, veio o menino engastilhado junto, sempre com aquela cara de moleque, aquela eterna piada no olhar. Deixei escorregar aquela criança que tinha em mim.

Lembra daquele presente que um dia dividimos? É, aquele quadro que eu te dei! Lembra dele como lembra de mim: com um vidro na frente, minha silhueta embaçada pelo frio que faz lá fora. Deixa-o em um canto bem escondido do seu passado: quem sabe você o esquece lá, e me esquece junto. Deixa-me virado de costas pra que eu possa fazê-lo também. E um dia, você vai encontrar aquele presente, lembrança do passado apagado, com o vidro embaçado, e não vai lembrar que um dia nossas vidas se cruzaram.

Talvez você lembre daquela criança que gostava de presente, e não daquele homem que vivia no passado.

sábado, 26 de junho de 2010

Galhofas

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Decidi evitar o destino mais cruel que a morte: a seriedade.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Todo o Bem do mundo



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Agathón. O que é bem, o Bem, um princípio supremo, summum bonun. A busca incessante do indivíduo pela satisfação; no campo inteligível, a verdade e razão; no campo sensível a luz e seu senhor, o Sol. Sobre a verdade e a razão que paira a discussão do limite do Bem como objeto dependente do logos, fundamental para a perpetuação do raciocínio e, por extensão, da razão. Pari passu, sobre a luz e sua origem, paira um grande breu, tanto no campo físico, pela total verticalidade das cidades, quanto na falta de luminosidade no pensamento e raciocínio contemporâneo.

O filme trata justamente do Bem social, tido por muitos filósofos como a razão e o raciocínio, em um mundo fantástico metaforicamente representado pelos livros. A “cidade-livro” é um exemplo do agathón urbano, onde o logos e os cenários urbanos acontecem simultaneamente em um espaço comum. Contudo, o contraste com a realidade percebe que, embora haja razão atualmente, ela encontra-se reclusa a um cenário paralelo das cidades. Como bem podemos observar, o conhecimento está aprisionado em instituições paralelas à realidade da grande maioria dos transeuntes, inacessíveis a essa parcela da sociedade.

Essa segregação é explorada no vídeo, ao construir um paralelo entre a “cidade-livro” e o cenário metropolitano atual. Evidenciando a harmonia entre o cidadão, a cidade e o conhecimento, o livro permite a criação de um cenário urbano que suporte essas três dimensões do Bem discutido no filme. Em gritante contraste, o perfil da cidade contemporânea não agrega tal tridimensionalidade, deixando lacunas em branco na composição do agathón.

A visão platoniana do Bem, como “aquilo para que todas as coisas tendem”, é explorada no final do filme, com a elevação da câmera, em um sentido otimista sobre toda a “falta do Bem” explorada durante os 4 minutos e 40 segundos de filme. Se aquele universo da realidade, paralelo à razão, é a tendência para que a sociedade se dirige, este é o sentido do Agathón na cidade contemporânea. Desse modo, traduzo o conformismo e a simplicidade adotada na maioria das decisões e reflexões atuais como sendo tudo o que é bem, e o princípio supremo da sociedade contemporânea.

Assim sendo, será que o Bem como primeiramente idealizado inexiste na cidade? Ou a restrição à razão e ao conhecimento é o Agathón, a tendência das coisas?

Nota do autor: Talvez o baixo aprimoramento técnico e o curto prazo para edição fizeram do meu vídeo uma grande interrogação para todos os presentes na exibição. Faz-se necessário ressaltar a expectativa criada, durante a exibição, por filmes com teor humorístico. Dessa forma, uma apresentação experimental passa a assumir um tom relativamente austero que pode ter causado alguma má impressão. Mesmo assim, pude captar enquanto tocava que a experiência de musicar um vídeo sobrepondo sonoridades torna tudo mais confuso, como a cidade em que vivemos, Bem ou Mal...